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J. Alberto Kaplan ao Jornal da Paraíba - 2005

por Compomus publicado 11/02/2020 23h09, última modificação 11/02/2020 23h09
Depoimento publicado em 02 de outubro de 2005 pelo Jornal da Paraíba, no Suplemento Cultural Augusto, de responsabilidade do editor Sílvio Osias.

Kaplan - Capa 

1 – CAMPINA GRANDE (1961-1964). Em fins julho de 1961 cheguei a Campina Grande, vindo de Rosário (Argentina) para assumir o cargo de professor de piano na hoje já não mais existente “Associação Campinense Pró-Arte”. Rememorando os acontecimentos vivenciados durante minha permanência nessa cidade, não posso deixar de reconhecer a dívida de gratidão que tenho para com ela. Foi durante minha permanência na “Rainha da Borborema” que ocorreram três acontecimentos que modificaram totalmente meu desenvolvimento como pianista, pedagogo e compositor. Dois deles estão relacionados com a leitura de livros. O terceiro, com o novo contexto geográfico e social onde me vi inserido. Os livros foram “O Ensino Moderno do Piano”, de Antônio Sá Pereira, escrito em 1935. Foi-me indicado por dona Aída Tavares, na época minha aluna na Pró-Arte. Quando acabei sua leitura (na verdade, “devorei” o livro), o tão procurado “caminho das pedras” da execução pianística e de seu ensinamento – que com tanto afinco tinha procurado, sem resultados convincentes, nos meus estudos com célebres pianistas e pedagogos em Buenos Aires, Genebra e Viena – acabei por encontrar em Campina Grande! Posso afirmar que a minha maneira de tocar e a metodologia do ensino pianístico que elaborei e adotei com sucesso no decorrer do longo período de minha vida dedicado à pedagogia – quase quarenta anos – está baseada, em grande parte, nos conhecimentos adquiridos através da leitura e estudo desse texto seminal. O outro texto cuja leitura influenciou decisivamente minha formação musical – desta vez no campo da composição musical –, foi “Ensaio sobre a Evolução da Música Brasileira”, de Mário de Andrade, do qual li alguns trechos numa das visitas que assiduamente realizava à excelente e bem provida livraria dos irmãos Pedrosa. Essa rápida e superficial leitura foi suficiente para despertar de tal maneira minha curiosidade que decidi comprar o livro. Desde então, tornou-se um daqueles textos aos quais volto periodicamente para “recarregar as baterias”. Ele influenciou, de maneira marcante, a postura estética que adotei quando, tempo depois, o “vírus” inoculado pela “mosca azul” da composição – que tinha ficado adormecido durante vários anos, anestesiado pela luta pela sobrevivência e por meu premente desejo de encontrar a solução para os problemas de execução que me afligiam – atacou-me novamente, desta vez para não mais me deixar. Contudo, a experiência que mais me marcou, como não poderia deixar de ser, foi aquela decorrente do próprio contexto sociocultural onde me encontrei inserido. A música que diariamente escutava através do rádio e nas visitas semanais que fazia à buliçosa e multifacetada feira de Campina Grande para a compra de mantimentos – onde as vezes passava um bom tempo escutando extasiado os cantadores se digladiando em demorados “desafios” – me fascinara. A riqueza da música popular com suas melodias impregnadas do rico e particular modalismo próprio da Região, seus ritmos caraterísticos, a opulência do folclore, tudo, enfim, me marcou profundamente. Era uma experiência totalmente nova para quem, como eu, tinha sido musicalmente educado dentro dos parâmetros impostos pela cultura européia. Foi a partir dessa vivência que pude melhor avaliar a profundidade e a beleza do trabalho de músicos como Béla Bártok, Villa-Lobos e Camargo Guarnieri, e a importância que esse tipo de música assumia na luta de nossos povos na preservação de sua identidade nacional. Posso afirmar, sem receios, que o Kaplan compositor dificilmente existiria na “versão” em que se lhe conhece, sem o tempo que passou em Campina Grande.

Kaplan - Furtado
Com Celso Furtado, Ministro da Cultura no Governo José Sarney.

2 - JOÃO PESSOA. O MOVIMENTO MUSICAL (1964 – 1978). João Pessoa, quarenta anos atrás, era uma cidade calma, bucólica. Suas praias, a beleza do seu mar e sua vegetação exuberante me tinham encantado desde o primeiro contato, quando nela passei um final de semana, convidado pelo Dr. Tavares, pouco tempo depois de minha chegada a Campina Grande, em 1961. Do ponto de vista cultural, o ambiente era rico em figuras de destaque não só no âmbito da Província, como em nível nacional: José Américo de Almeida, Virginius da Gama e Melo, Juarez da Gama Batista, o já citado Mário Moacyr Porto e, entre os jovens, o talentoso Paulo Pontes, são algumas das muitas que poderiam ser citadas. Existia um movimento teatral significativo, liderado por Rubens Teixeira e Margarida Cardoso, do qual faziam parte um grupo de jovens que depois iriam ter destacada atuação, como Edinaldo do Egyto, Zezita Matos, Fernando Teixeira, e outros cujos nomes neste momento me escapam. Nas Artes Plásticas despontavam os jovens Raul Córdula, Arquidy Picado e João Câmara que pouco depois brilhariam no cenário nacional. No cinema, Linduarte Noronha pontificava. Seus documentários serviam de exemplo aos cineastas de todo o país. Com referência à vida musical, acho importante e necessário desfazer um equívoco que foi espalhado – por motivos escusos – por pessoas que, em chegando à cidade anos depois e usando da velha tática de valorizar seu trabalho desvalorizando o realizado por outros, procuraram deturpar a verdade. Hoje, em decorrência dessas falsas informações, as novas gerações acreditam que a música “teria nascido” em João Pessoa na década de 80. Contrariamente ao que se pensa, quando aqui cheguei, em meados de 1964, a convite da UFPB, encontrei um desenvolvimento musical invejável para uma cidade desse porte. Existia uma tradição que remontava, pelo menos, à década de 30, quando o Professor Gazzi de Sá tinha iniciado, antes de se mudar para o Rio de Janeiro, um movimento sério nos campos do ensino musical e da prática coral. Com sua partida, a semente que Gazzi plantou se desenvolveu através do trabalho competente de seus discípulos, os irmãos Luzia e Augusto Simões no Conservatório Antenor Navarro, que contava ainda com docentes do porte de Gerardo Parente, Pedro Santos e Arlindo Teixeira. Já a "Sociedade dos Amigos da Música", entidade mantida pela contribuição de associados, também desempenhava um importante papel no desenvolvimento da cultura musical da cidade, patrocinando a apresentação de artistas nacionais e estrangeiros de valor que excursionavam pelo Norte - Nordeste. Existia uma Orquestra Sinfônica formada, na sua grande maioria, por músicos amadores que procuravam substituir sua falta de preparo formal por um entusiasmo invejável. Foram seus regentes, entre outros, Archidy Picado (pai), Henrique Gregori, Rino Visani, Pedro Santos e Arlindo Teixeira. A criação, em 1963, dos ”Cursos Livres de Música” no âmbito da UFPB – iniciativa visionária do Reitor Mário Moacyr Porto – foi um elemento fundamental no desenvolvimento musical da cidade. Do seu corpo docente faziam parte profissionais de escol, como Cussy de Almeida, Emílio Sobel, Piero Severi e Arlindo Teixeira, que, paralelamente às suas atividades docentes, formaram um Quarteto de Cordas de primeira qualidade. O conjunto se apresentava mensalmente em recitais que inicialmente eram realizados no Teatro Santa Rosa. Depois, quando o moderno prédio da Reitoria perto da Lagoa foi acabado, passaram a ter lugar no seu Auditório. Participei com o Quarteto de várias apresentações. Entre as obras que tocamos juntos, lembro do "Quinteto para Piano e Cordas", de R. Schumann, o "Quarteto Op. 26", de Brahms, e o "Trio Op. 11", de Beethoven. Em 1966, com a saída do Prof. Rino Visani, assumi as funções de coordenador dos Cursos de Música. Minha gestão se prolongou até 1970. Nesse lapso, procurei que a temporada de concertos e recitais que a UFPB patrocinava fosse do mais alto gabarito e bem diversificada. Com o apoio do saudoso Hildebrando Assis – Diretor do Setor de Artes –, conseguimos trazer para João Pessoa intérpretes que se destacavam no cenário nacional e internacional. Entre os muitos que por aqui passaram poderia mencionar: os pianistas brasileiros Jacques Klein, Nelson Freire, o jovem paraibano Antônio Guedes Barbosa (que já despontava no cenário nacional), Linda Maria Bustani, Luizinho Eça e o “Tamba Trio”, Francisco Mignone, Eduardo Hazan, Ivete Madaleno, o violinista Paulo Bosísio e o famoso Antônio Menezes, considerado um dos grandes violoncelistas da atualidade. Entre os artistas internacionais, lembro os pianistas Jiri Hubicka (checo) e o argentino Aldo Antognazzi. Procuramos também prestigiar os bons intérpretes da região. Assim, além das apresentações periódicas de figuras locais como os pianistas Germana Vidal e Gerardo Parente, foram convidados para atuar nos concertos da Reitoria as pianistas pernambucanas Elyana Caldas Silveira e Josefina Aguiar, o violonista Henrique Annes, os potiguares Jarbas Borges Lima (piano), Vera Arruda (piano) e Fidja Siqueira (violão). Se a esses dados acrescentamos as assíduas apresentações do então já excelente Coral Universitário, sob a competente regência do saudoso Arlindo Teixeira, pode-se apreciar que o movimento musical na capital podia comparar-se, sem demérito algum, ao de outras capitais da região bem maiores, como Recife e Fortaleza. As novas gerações têm de saber que o alto padrão da música praticado hoje em João Pessoa tem seus alicerces fortemente fincados no trabalho de muitos que não pouparam esforços e dedicação para que nossa capital tivesse uma vida musical de qualidade. Ela não é fruto de demiurgos que a criaram a partir do nada.

 

Kaplan - OSPB
O maestro Kaplan em ação, regendo a Orquestra Sinfônica da Paraíba no Espaço Cultural, da qual foi regente titular nos anos 80.

3 - A IMPORTÂNCIA DO DEPARTAMENTO DE MÚSICA E DA ORQUESTRA SINFÔNICA NO DESENVOLVIMENTO DA VIDA MUSICAL DO ESTADO E DA REGIÃO. A criação do Bacharelado de Música da UFPB, centro de estudos que tantos benefícios trouxe à vida musical da região nordestina, foi fruto de uma longa batalha que travamos junto com os colegas desde 1966 até 1978. Encontramos sempre dois empecilhos. O primeiro deles, de caráter administrativo: nenhum de nós tinha a habilitação exigida para assumir as funções de professor de 3.º grau. Se bem que todos exibíssemos currículos que demonstravam nossa capacitação, não atendíamos o requisito básico da legislação vigente: possuir o título universitário. Mas, como conferimos depois, havia por detrás daquele alegado, um segundo motivo, este de caráter cultural e muito mais forte que o primeiro, que impedia que nossos desejos se tornassem realidade. Desde que começamos a pleitear a referida mudança, ficou evidente para nós o desinteresse da “alta burocracia” da Universidade, formada, em grande parte, por homens de preparo intelectual – advogados, médicos, administradores, etc. – muitos deles com incursões bem sucedidas no campo das “belas letras” e outros ramos do saber artístico. O despreparo e a indiferença da maioria deles com relação à música eram gritantes e, ao mesmo tempo, chocantes, pois não dava para entender como pessoas sensíveis às artes da escrita fossem tão insensíveis para com as do som. A situação mudou quando, em 1977, assumiu a Reitoria o engenheiro Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque. Homem de visão, o novo Reitor vinha disposto a inovar e transformar a Universidade num grande centro de estudos. Nada lhe era impossível quando passava a acreditar que uma determinada medida seria benéfica para a instituição. Assim, imprimiu uma nova orientação ao Departamento Cultural, cuja meta principal seria a de prestigiar a cultura popular. Mesmo com a mudança de rumo, os Cursos de Música não ficaram abandonados pela nova administração. Pelo contrário, foram chamados para colaborar novos professores com o intuito de reforçar o corpo docente. Os primeiros escolhidos foram a pianista pernambucana Ana Lúcia Altino – que tinha acabado de regressar da Alemanha, onde fizera pós-graduação – e seu marido, o violinista Rafael Garcia, de nacionalidade chilena, que ficou responsável pelas aulas de violino quando Cussy de Almeida se afastou da UFPB. Ana Lúcia teve, sem dúvida, importância marcante na transformação do Setor de Música em Departamento de nível superior . Uma das suas primeiras iniciativas foi a de “recriar” o nosso Quarteto de Cordas, que tinha ficado desfalcado com a saída de Cussy e com as trágicas mortes de Piero Severi (violoncelista) e Emílio Sobel (violista). Era muito difícil a substituição de músicos desse porte, de vez que, já na época, somente podiam ser contratados para atuar no âmbito do ensino superior os portadores de diploma de nível superior. Felizmente, várias circunstâncias vieram colaborar com as necessidades administrativas e os planos de Ana Lúcia. A primeira – e mais importante – foi o Professor Lynaldo ter percebido que a legislação era um entrave para o crescimento de algumas áreas da UFPB, entre as quais o Setor de Música. Lynaldo, com a determinação política que lhe era peculiar, encontrou uma brecha na lei que lhe possibilitava – no âmbito interno da Universidade – superar esses impedimentos. Não perdeu tempo. Enviou imediatamente para os órgãos competentes, para estudo e aprovação, o texto da, depois tão badalada, Resolução N.º 200. De acordo com ela, a UFPB poderia contratar como professor aquele candidato que, mesmo não possuindo o diploma de ensino superior, apresentasse um Currículo que provasse ter aqueles atributos e qualidades necessárias – numa determinada área de conhecimento – para lecionar na universidade. Foi a tábua de salvação para nosso setor. Ana Lúcia convenceu o Reitor da necessidade de contratar os músicos necessários para completar o desfalcado Quarteto de Cordas e criar um Quinteto de Sopros e outro de Metais. Com base na Resolução 200, foram contratados – entre 1978 e 1980 – com excelentes salários e em regime de tempo integral, músicos argentinos, chilenos, americanos, franceses, etc. de excelente qualidade. Muitos deles que, como eu, cometeram a imprudência de beberem “água da Bica” ainda se encontram, 25 anos depois, entre nós. Posso citar Carlos Rieiro, Gustavo de Gea, Egon Figueroa, Yerko Pinto, Hector Rossi, Pedro Pinto, Samuel Espinoza, Nelson Campos, Roberto di Leo, e tantos outros que aqui casaram, tiveram e educaram seus filhos, que contribuíram – e continuam a fazê-lo – na criação dessa plêiade de excelentes músicos paraibanos e de todo o Brasil que ajudaram formar. Com a chegada dos novos colegas, todos eles contratados com base na Resolução N.º 200, que permitia que ensinassem num curso universitário, mesmo não possuindo o diploma habilitante, estavam dadas as condições necessárias para materializar o velho sonho de criar o Departamento de Música de nível superior. E foi o que fez sem titubear Lynaldo Cavalcanti, apesar da oposição de muitos. O Reitor não recuou diante das dificuldades. Determinado a que o Bacharelado funcionasse a partir do ano seguinte – 1978 –, mostrou o que significa ter vontade política. Tomou todas as providências e criou “ad referendum” do Conselho Universitário, nosso tão ansiado Curso de Bacharelado. Importante é esclarecer que a atitude de Lynaldo não só beneficiou o ensino musical. Também teve repercussões profundamente benéficas na reativação da Orquestra Sinfônica da Paraíba. Em 1979, o então governador Tarcísio Burity, “melômano assumido”, estava decidido a renovar os quadros da velha Orquestra Sinfônica que se encontrava parada porque os baixos salários que oferecia não atraíam os bons executantes necessários para um funcionamento eficiente. Infelizmente, pouco podia fazer o governador no sentido de melhorar os salários. Estado pobre e sempre endividado, não possuía os recursos necessários para bancar esse tipo de empreendimento. Pois bem, Lynaldo, através de um convênio assinado com o Estado, liberou os músicos contratados para poder integrar a nossa Orquestra. Foi um salto qualitativo fantástico, que fez com que, poucos anos depois, quando a OSPB se encontrava sob a regência competente de Eleazar de Carvalho, fosse considerada uma das três melhores do País. Infelizmente, os esforços de Lynaldo e Burity não vingaram, pois os governos posteriores pouco ou nada fizeram para conservar o grau de excelência que nossa Orquestra tinha atingido. Exemplo do descuido são os salários atuais – em torno de R$800,00 – talvez o menor e mais vergonhoso do País em agrupações semelhantes. Os nossos jovens e talentosos instrumentistas estão migrando para o Sul, onde sua qualidade é reconhecida e bem remunerada. O trágico dessa situação é saber que todas as outras orquestras do Norte-Nordeste, da Bahia até o Pará, só conseguem trabalhar com eficácia graças à colaboração dos nossos professores e alunos que são convocados permanentemente para injetar qualidade e eficiência nos seus quadros.

Kaplan - Solha
Arte engajada: com Solha, parceiro na Cantata pra Alagamar.

4 – A “CANTATA PRA ALAGAMAR”. UMA EXPERIÊNCIA HUMANA E MUSICAL MARCANTE. Em 1977, quando me afastei da regência da Orquestra de Câmara do Estado, criei, no âmbito da Universidade, a “Camerata Universitária”, um conjunto integrado por vinte e quatro coralistas de escol. Nosso objetivo era difundir a música vocal e instrumental da Renascença e do Barroco europeu, sem esquecer as grandes obras dos compositores brasileiros da época colonial (Padre José Maurício Nunes Garcia, E. Lobo de Mesquita, etc.). Desde meados desse ano, estava passando por, digamos assim, uma crise existencial. Contente como profissional, sentia-me insatisfeito como ser humano. Achava que tudo o que estava fazendo era supérfluo e sem sentido – totalmente dispensável – numa região onde a miséria, a mortalidade infantil, a doença e o analfabetismo atingiam índices assustadores. A dura realidade defrontada diariamente fazia com que me sentisse um ente socialmente inútil. Na Semana Santa de 1978, a Camerata apresentou na Igreja de São Francisco um programa composto por obras tematicamente relacionadas com a Paixão de Cristo. Tomamos a iniciativa de convidar Dom José para que comentasse os textos das composições que iríamos executar. Aceitou, e o evento, graças à sua inestimável colaboração, alcançou uma repercussão inusitada. O mais importante para mim, porém, não foi o resultado alcançado, mas o que esse contato com Dom José propiciou: o início de uma amizade sincera, além de uma profunda admiração pelo trabalho realizado por nosso Bispo. A relação que se estabeleceu entre nós teve, naquele momento de crise que estava passando, um significado e um valor todo especial, pois me deu a oportunidade de discutir, nos encontros semanais que tive com ele, as dúvidas que me atormentavam. Numa dessas entrevistas, perguntou-me se tinha algum compromisso na segunda-feira seguinte. Disse-lhe que não. Comentou então: “Poderia, caso lhe interesse, ir comigo para Alagamar. Tenho que rezar uma Missa lá; acho que essa visita lhe fará bem”. A bem da verdade, aceitei o convite porque estava curioso quanto ao que ocorria na referida fazenda, que, naqueles dias, ocupava as primeiras páginas dos jornais locais. A causa: a luta dos camponeses por um pedaço de chão para sobreviver. Na segunda-feira, fomos para Alagamar. No decorrer da viagem, meu amigo foi-me contando pormenores da luta que os camponeses estavam enfrentando e do processo de conscientização em andamento para fazerem valer seus direitos. Durante as poucas horas que passei em Alagamar, fiquei admirado com o grau de maturidade, destemor e consciência que possuíam. Senti-me profundamente tocado pelo que vi e ouvi. Na viagem de volta, já noite, Dom José permaneceu calado. Não perguntou nem comentou nada. Enquanto isso, eu pensava que fazer para registrar essa epopéia do camponês paraibano, na sua luta por justiça social e uma vida digna. Ocorreu-me compor uma Cantata que contasse o ocorrido. Quanto mais pensava na idéia, mais entusiasmado ficava. Voltei-me para Dom José e, determinado, lhe disse: “Vou escrever uma obra relatando os sucessos de Alagamar; essa luta tem de ser contada e cantada”. Dom José voltou-se para mim e, sorrindo, me respondeu: “Ótimo, estava aguardando por isso”. Percebi então o porquê do convite para visitar Alagamar. Meu amigo, com sua vasta experiência de pastor de almas, tinha compreendido o cerne dos meus problemas e estava-me oferecendo a oportunidade de sentir-me útil participando da caminhada. O problema era conseguir alguém capaz de redigir o texto. Realmente, a tarefa não foi fácil. Durante mais de um mês, consultamos diversas pessoas que achávamos estivessem capacitadas para realizar a tarefa. Finalmente, para minha sorte e alegria, consegui convencer meu amigo Waldemar J. Solha – esse multifacetado “sorocabano”, verdadeiro ‘homem da Renascença' (pintor, dramaturgo, escritor, poeta) – a aceitar o encargo. Acordamos que o texto tinha de ser didático, “terra-a-terra”, claro, verdadeiro, se possível um cordel. Ele concordou. Resumindo: quinze dias depois, Solha me entregou o texto. Primoroso! A qualidade do trabalho de meu amigo me estimulou de tal maneira que, dois meses depois, a partitura estava pronta e os ensaios com o Coral, os solistas, instrumentistas e o Jogral começaram imediatamente. A equipe convidada a participar era de escol: membros da Camerata Universitária, Fernando Teixeira, Ubiratan de Assis, Ronald Lira, João Costa, Norma Romano e Gustavo de Paco de Géa. O entusiasmo da turma era grande. Estavam empolgados com a obra. No dia 17 de junho de 1979, a “Cantata pra Alagamar” estreava na Capela da Igreja de São Francisco, diante de uma platéia composta por mais de quatrocentas pessoas. A reação foi, sem exageros, um verdadeiro delírio. O público aplaudindo de pé, gente chorando. Estavam também presentes D. Hélder Câmara (Arcebispo de Olinda e Recife), D. Ivo Lorscheider (Bispo de Santa Maria), D. Marcelo Carvalheira (Bispo Auxiliar da Paraíba) e D. Fragoso (Bispo de Crateús). A obra foi gravada no mês seguinte para o selo Marcus Pereira, de São Paulo. O disco teve ótima acolhida. Diversos corais do sul do país – o “Madrigal Veredas” e o “Luther King”, de São Paulo, entre outros – nos escreveram pedindo permissão para executar a composição. O primeiro deles montou a obra em forma de espetáculo teatral. Dessa maneira, foi apresentada, em 1979, sob o patrocínio da Arquidiocese de São Paulo, por sugestão de D. Paulo Evaristo Arns, para o Prêmio Nobel da Paz, o argentino Perez Esquivel, que, na ocasião, estava percorrendo o Brasil proferindo conferências. Assisti à apresentação, especialmente convidado pelo Madrigal. Foi primorosa! No ano seguinte, foi programada quando da visita a nosso país do Papa João Paulo II. A execução esteve novamente a cargo do “Madrigal Veredas” e ocorreu no estádio do Morumbi, diante de mais de cinqüenta mil pessoas. Apareceram críticas muito lisonjeiras em diversos jornais do País. O “Diário de Minas” festejou o aparecimento da obra dizendo que, a partir daquele momento, o Brasil já tinha sua “Cantata”. O crítico musical do “Correio do Povo”, de Porto Alegre, Antônio Holdfeldt, escreveu um elogioso trabalho sobre o disco, que teve ampla repercussão no sul do país. São passados vinte e seis anos e a “Cantata” permanece, infelizmente, absolutamente atual. O fato, em lugar de me deixar orgulhoso, me entristece profundamente. A reforma agrária, pela qual tão bravamente lutaram os camponeses de Alagamar, continua praticamente no papel. Os interesses do latifúndio continuam a falar mais alto que os da sociedade como um todo. Apesar disso, não perco as esperanças. A luta deve continuar. É imprescindível nunca esquecer o poema de Brecht: “Há homens que lutam um dia e são bons; outros que lutam um ano e são melhores; há os que lutam muitos anos e são muito bons; porém, os que lutam toda a vida, esses são imprescindíveis”.

Kaplan - Parente
Duo Kaplan-Parente: piano brasileiro executado a quatro mãos.

5 – O DUO KAPLAN-PARENTE. Meu primeiro contato com o repertório original para piano a 4 mãos foi por ocasião do recital que fizemos com o pianista Pierre Klose na “Pró-Arte”, em Campina Grande. Foi ele quem despertou minha curiosidade e interesse por esse rico filão, na época praticamente inexplorado, da música para piano. Anos depois, no âmbito do Setor de Música da UFPB, tínhamos formado vários duos para realizar apresentações publicas periódicas com o intuito de movimentar o ambiente musical da cidade e, eventualmente, do interior do Estado. Em 1972, decidimos constituir, com meu querido amigo e colega Gerardo Parente, um Duo de piano a 4 mãos. Desde o início, apesar de nossas personalidades e escolas pianísticas tão diferentes – e talvez por isso – nosso entrosamento foi bom. A simbiose que se estabeleceu entre nós chamava a atenção de todos e ficou patente a partir das primeiras apresentações que realizamos. A escolha de repertório não oferecia problemas, pois todos os grandes compositores, de Johann Christian Bach até Stravinsky e Hindemith, passando por Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann e Brahms, escreveram para esse tipo de formação camerística. A única dificuldade era o desconhecimento de obras de compositores brasileiros para incluir nos programas. Na época, desconhecíamos o rico acervo que existia de obras de autores nativos. Essa situação mudou totalmente por ocasião de uma viagem que fiz em 1974 para o Rio de Janeiro. Na ocasião, entrei em contacto com Aloysio de Alencar Pinto, pianista e compositor que tinha sido um dos professores de Gerardo, e com Mercedes Reis Pequeno, diretora da Seção de Música da Biblioteca Nacional. Aloysio me adiantou que o repertório para piano a quatro mãos existia e não era pequeno. Para exemplificar, tocou, com Irany Leme, excelente pianista, muito sua amiga, que participava do encontro, uma obra que tinha escrito recentemente. O título: SARAU DE SINHÁ. A peça, com meia hora de duração, era um divertimento coreográfico sobre cenas de um sarau no Rio antigo, cujo enredo era de autoria de Guilherme de Figueiredo, o autor de “A Raposa e as Uvas”. Fiquei tão impressionado com a obra que pedi, e recebi na hora, uma cópia dela. Na visita que fiz a Mercedes, ela me mostrou o acervo que a Biblioteca possuía. Deparei-me com obras de valor de Carlos Gomes, Villa-Lobos, Mignone, Aylton Escobar, Ernani Braga, Radamés Gnattali, Edino Krieger e muitos outros. Quando voltei a João Pessoa, levava na mala farto material para o Duo. Gerardo, como já esperava, ficou encantado com o repertório. Decidimos, então, elaborar um programa totalmente dedicado a compositores brasileiros. Essa decisão mudou os rumos do Duo. A beleza das obras, assim como o fato de a maioria delas ser apresentada em primeira audição, despertou a curiosidade de diversas instituições patrocinadoras. No decorrer de 1975, tocamos nas principais capitais do Nordeste: João Pessoa, Natal, Fortaleza, Recife e Maceió. No ano seguinte, a convite da Funarte, atuamos em cidades de São Paulo: Piracicaba, Sorocaba e Campinas, finalizando nossa turnê com uma apresentação no Museu de Arte Moderna, na capital do Estado. Em 1976, a convite dos “Partners of America”, fizemos uma turnê de 25 recitais em diversas cidades dos Estados Unidos (Connecticut, Massachusets e Maine), com enorme sucesso. Na volta, o selo “Marcus Pereira”, de São Paulo, nos convidou para gravar um LP com o programa de compositores brasileiros. O sucesso do disco – “Piano Brasileiro a 4 Mãos” – foi imediato. José Ramos Tinhorão, o conceituado e temido crítico musical do “Jornal do Brasil”, o escolheu como um dos dez melhores LPs gravados no ano de 1977. Acredito que a realização do disco foi o “ponto culminante” da trajetória do Duo. A partir de 1978, por razões de caráter pessoal, minha participação nele ficou comprometida. Em fins de 1979, quando fomos com Márcia, minha esposa, a Santa Maria (RS), onde passaríamos dois anos, decidimos com meu velho e querido companheiro desativar definitivamente as atividades do Duo. A parceria com Gerardo foi uma das experiências mais gratificantes de minha vida profissional. Sinto orgulho do que realizamos. Sem falsa modéstia, acho que contribuímos, de maneira expressiva, para divulgar, no País e no exterior, um repertório que, apesar de sua qualidade e riqueza, estava praticamente esquecido. Ao mesmo tempo, serviu de exemplo, pois, depois do sucesso alcançado pelo disco, apareceram outros duos que deram continuidade às pesquisas que havíamos iniciado, trazendo à luz um material tão rico quanto o que tínhamos revelado. Segundo a tradição popular, quem bebe água da fonte (“Bica”) que se encontra no Parque Arruda Câmara fica irremediavelmente ligado à Paraíba.