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A EDUCAÇÃO POPULAR NÃO COMPORTA “EU” DEMAIS E “NÓS” DE MENOS

Pensar e refletir sobre a vida e práxis, como síntese conectada com o pensamento de Paulo Freire, aprofundar a educação popular no passo a passo da caminhada, olhar atento e difuso sobre as inúmeras experiências e práticas de educação popular em saúde...
publicado: 04/11/2019 11h46, última modificação: 05/11/2019 15h02

Pensar e refletir sobre a vida e práxis, como síntese conectada com o pensamento de Paulo Freire, aprofundar a educação popular no passo a passo da caminhada, olhar atento e difuso sobre as inúmeras experiências e práticas de educação popular em saúde, ouvido que escuta para acolher, na perspectiva de sermos mais educadores e vivenciarmos mais o que sabemos e aprendemos, para melhor ensinar. Tudo isso vai ao encontro da educação popular como proposta político-pedagógica-metodológica, científica e popular, que se constitui num grande desafio do tempo presente e futuro, quando consideramos a crise planetária, que torna tudo volúvel e movediço neste sistema do capital da economia do horror.

Centralizando a questão falemos sobre o simbólico e o concreto da educação popular, sob o viés de dois astrônomos. A educação popular se materializa num contexto da vida: meu contexto. “Do lugar onde eu estou e até o limite que eu fui”. É de lá que eu vim, aprendi, vivenciei…  Imaginemos dois astrônomos, cada qual observando a mesma estrela, mas só que de observatórios diferentes, veem a mesma luz, mas de ângulos e lugares diferentes. Trazendo esta simbologia para a educação popular, muitas vezes como educadores parecemos astrônomos que veem o mesmo fenômeno, mas de ângulos e lugares diferentes. Um educador que olha para a educação popular com as lentes da academia, um outro que olha com as lentes da gestão de saúde, já um outro que olha com as lentes do meio popular, para ambos, a descrição e prática seguramente não serão a mesma, embora se trate do mesmo objeto. Cada um de nós ver a realidade, a vida e os acontecimentos com os limites e diferenças que nos são inerente, causa e efeito das nossas experiências de vida, lentes que foram se formando com a nossa história. A lente do doutor da academia não é mais importante que a lente do educador popular ou do profissional de saúde. As diversas lentes precisam servir para construir objetivos comuns. É diferente da lente visual que serve apenas para quem dela precisa, de acordo com a deficiência visual adquirida. Vemos a educação popular do ângulo que nós vivenciamos. Outra pessoa tem outro ângulo. Realidades, experiências e diferenças implicam em olhares diferentes, que necessariamente não são divergentes. Nossas limitações e potencias vão fazer que não vejamos do mesmo jeito, embora muitas vezes seja a mesma coisa, a mesma estrela, a mesma realidade.

A lida e a observação da educação popular frente ao papel de ser um educador popular, em muitos casos nos levam a fazer de conta que se reflete, que se problematiza, que se cuida e que se vivencia. Quando o “canudo” é mais importante que a práxis, para o doutor, quando o profissional de saúde não busca o equilíbrio entre a carreira e a missão e quando o educador popular não entende a diferença entre o que seja ser um “fake comunitário” e um verdadeiro agente comunitário, acende-se aí um sinal de alerta sobre que prática de educação popular se estar vivendo e falando. O jeito de acreditar e vivenciar determina a nossa experiência.

Por isso mesmo, seja doutor, profissional de saúde ou educador popular, corre o risco de se tornar fanático ou intolerante, soberbo ou arrogante, num jogo que faz de conta que dialoga, que escuta, que constrói junto, que cuida ou se cuida, uma vez que a pessoa, nesta situação limite acha que todos os outros têm que ver as coisas do ângulo dela. Daí, puxa todo mundo para o seu ângulo de visão ou tenta persuadir sem dialogar, num jogo de cabra cega, para que vejam o que ela ver, sem perceber que do outro ângulo, as outras pessoas veem o que ela ver, só que com suas próprias lentes de vivências e práticas, o que permite ver diferente, sem que isso signifique disputas ou diminuição do valor que cada ente constrói na sua singularidade, enquanto pessoa e parte de um coletivo. Mas aí a pessoa, na sua prática bem sutil, diz: é, mas você não estar vendo do meu ângulo, sob o meu observatório. E a minha lente oferece a visão mais perfeita. Ou seja, algumas pessoas, na sua extrema capacidade de conhecimento não conseguem considerar que, a educação popular não comporta soberba.

Pessoas assim, não acreditam ou apostam na educação popular. Elas acreditam na lente delas, elas apostam no observatório delas, elas acreditam nos falsetes de um certo conhecimento e experiência, que basta ser repetido sem considerar as mudanças do tempo e da estação e, pronto! Vai dar certo! Mas contanto que ela esteja à frente. Portanto, o telescópio dela, o jeitinho dela e a bagagem dela são fundamentais. Se o outro diz que tem uma outra lente, um outro telescópio para observar a estrela, ela vai afirmar categoricamente: só que você não vai ver direito e não vai fazer certo. Daí, logo de cara, se nega na prática “o aprender fazendo”, que vai ao encontro do “saber de experiência feito”.

O risco de ser um doutor, profissional de saúde, gestor ou educador popular assim, é gigantesco, considerando sobre quais bases socioculturais se vive nesta encruzilhada dos tempos líquidos, de que fala o sociólogo Zygmunt Bauman. Eu, eu, eu, eu, eu…  “É o meu jeito! Se você não concorda comigo e não segue os meus comandos, no jogo do faz de conta que tudo é devidamente compartilhado, é você que do seu canto ou ângulo de visão atrapalha e deve ser sutilmente boicotado”. Se é assim que funciona na “selva” desta sociedade, por que não na educação popular? O doutor só de livros e teorias, sem práxis, o profissional de saúde sem vínculo de equipe e território, o educador popular sem comunidade, ambos, cada um no seu quadrado e distantes das rodas, navegam pelas águas turvas desta perplexidade, não situado de fato nos valores da dialogicidade, sitiados em si mesmos, em seu próprio egocentrismo e não resolvidos do ponto de vista da amorosidade e alteridade que na educação popular germina.

A liquefação do Estado-Nação, de Bauman, do ponto de vista micro, simbolicamente trazemos para a liquefação do estado dos valores, que deveriam fundamentar as relações entre pares, grupo, equipe, coletivo, comunidade, na perspectiva da autonomia dos sujeitos, de que tratou Paulo Freire. A liquefação das relações, a falta de solidez e confiança na política e nos políticos, nos partidos e grupos, mesmo religiosos, a insegurança que compromete o trabalho em equipe, os atuais tempos líquidos da crise política brasileira que submete à liquefação da economia… tudo está ligado neste sistema perverso das relações que atravessam os estado-nações, os estados de espírito e a vida e prática cotidiana das relações pessoais e coletivas, sociopolítica e comunitária.

Certo dia, em uma discussão respeitosa entre duas pessoas, uma tentava impor seu ponto de vista, com todo o seu peso certificado pela academia. Uma das pessoas falava, falava e falava, em seu monólogo sutil e retórico. Na primeira problematização que o outro fez, ela se saiu assim: “você é incapaz de compreender, você não segue a metodologia da educação popular”. O outro se pôs a rir por dentro, para não precisar externar sua contrariedade e assim minimizar aquela situação de desconforto. Em todas as situações semelhantes, as pessoas acabavam se moldando ao jeito dela, para evitar uma costumeira reação de mágoa ou raiva, em face do destempero emocional daquela pessoa. Nesta situação, quem ousasse pensar e agir diferente, logo se via tolhido no seu ato de observar as estrelas. Quando um educador popular, seja de qual status ou extrato for, que externaliza todo o seu conteúdo e sabedoria, transforma sua experiência num produto, mas não cuida de vivenciar com humildade o ato de aprender e ensinar e, sendo mestre ou doutor, profissional ou gestor, mas não exercita o cuidado de si, a exposta humildade vira mera aparência e o ato de cuidar do outro vira performance. Em todos os casos, uma prática coletiva de aparência acaba demonstrando em suas nuances que existe “eu” demais e “nós” de menos.

Elias José da Silva – Fortaleza