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“A Paraíba compreendeu, através da UFPB, a importância do cinema”, reconhece Vladimir Carvalho

Para o cineasta paraibano, a universidade acerta em patrocinar o Fest Aruanda
publicado: 28/11/2019 18h00, última modificação: 28/11/2019 18h04
Documentarista está concluindo filme sobre o militar e ex-secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro Giocondo Dias. Crédito: Divulgação

Documentarista está concluindo filme sobre o militar e ex-secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro Giocondo Dias. Crédito: Divulgação

A 14ª edição do Fest Aruanda, sob chancela da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), terá início nesta quinta-feira (28) e seguirá até o dia 5 de dezembro, com homenagens ao centenário do cinema paraibano. Conversamos sobre esse percurso com o documentarista paraibano Vladimir Carvalho, 84 anos, diretor de quase 30 curtas e médias-metragens e de oito longas. Confira abaixo:

Ascom - A Paraíba demorou a ter um festival de cinema?

Vladimir Carvalho - Eu penso que, de certa forma, a Paraíba meio que tardou em perceber a importância que teria, no caso do festival, um certame desse tipo, me refiro ao do cinema, num determinado momento – momento até que recente.

Houve, de certa maneira, uma espécie de... Ampliou-se muito o número de festivais no Brasil, a partir dos festivais de Brasília, no Rio de Janeiro – alguns que já se foram, alguns ficaram –, outros em São Paulo, e assim, por exemplos mais centrais, do Sudeste do país etc., em Minas, houve uma multiplicação, um grande movimento em que, de repente, você tinha perto de 200 festivais no Brasil inteiro. E a Paraíba tardava em realizar o seu festival.

Como aqui, posso dizer, foi o berço, a virada do documentário brasileiro, por exemplo, o tipo de filme que de alguma forma foi sempre pouco valorizado, digamos assim, porque tem dificuldades com o mercado, os exibidores têm ainda um pouco de preconceito e tal, então foi impressionante o acerto, a disposição da Universidade [Federal] da Paraíba em patrocinar no nascedouro o que foi proposto pelo professor Lúcio Vilar.

Essa semente foi incrível porque muitas cidades, sem o significado que a Paraíba acolheu, com a realização especialmente do documentário Aruanda, que é um divisor de águas, juntamente com o Arraial do Cabo de Paulo Cezar Saraceni, o Aruanda, de Linduarte Noronha, foi o marco que fez a virada do cinema brasileiro, do documentário moderno contemporâneo da época.

E a Paraíba compreendeu, através da sua universidade, a importância do cinema, não só do cinema documentário, mas do cinema em si, e abriu as portas e acolheu e fez o Fest Aruanda, que está aí vitorioso, exitoso até hoje.

De forma que isto foi um reconhecimento não só de algo que existia, mas de um estado de espírito. A gente ansiava, todos os paraibanos, os que vivem aqui e os que tiveram que migrar porque aqui não tinha, como ainda hoje são um pouco difícil, as condições materiais e até financeiras de realizar o cinema aqui.

A isso se aliou, de alguma forma, as políticas públicas. O Estado, aqui, tanto o municipal como o estadual, até onde eu sei, resolveu bancar, não na sua totalidade, não como a gente espera dos poderes públicos, mas isso foi essencial para que essas coisas se juntassem.

Hoje você tem editais, ao lado do festival você tem manifestações. O cineclubismo ajudou, porque é uma tradição da Paraíba, como o antigo cineclube de João Pessoa, com José Menezes, foi uma pessoa, um crítico historiador do cinema muito interessante que lançou junto com os padres que estudaram na Gregoriana de Roma (Pontifícia Universidade Gregoriana), esse antigo cineclube de João Pessoa, Padre Fragoso.

Ascom – Por sinal, o reitor que faleceu essa semana (Antônio de Souza Sobrinho) estudou nessa universidade.

Vladimir Carvalho – Pois é. Isso é muito importante e isso deu uma força muito grande e, hoje, o pessoal do cinema, se não está inteiramente satisfeito é porque isso é uma luta geral, no país inteiro, recursos financeiros. Sem isso, sem essa associação com o Estado, que banque através de editais, estimule, fomente a produção de filmes, não acontece.

Isso, na Paraíba, é ainda um tanto quanto insipiente, mas já se estabeleceu uma consciência, tanto para manter o festival funcionando, é muito importante, e eu dou como exemplo o que aconteceu já no ano passado, com apresentação de nada menos do que seis longas-metragens. Não foram sete porque o filme sobre o Jackson do Pandeiro, de Marcus Vilar, não pode ser incluído por questões que não vale aqui comentar. Mas, de uma vez só, a Paraíba como que deu um choque.

Eu, de uma forma até meio exagerada, dei uma entrevista, e não só dei uma entrevista como fiz uma intervenção na entrega dos prêmios do Sistema Sesc, em São Paulo, e propus ao Sesc que fizesse, em nível nacional, a divulgação no seu circuito, porque o Sesc tem condições para isso, em cada cidade, em cada capital, ele tem o serviço Sesc, com boas salas de cinema, e que pudesse projetar os seis longas-metragens da melhor qualidade.

Isso foi assinalado pelos críticos, especialmente o crítico do jornal O Estado de São Paulo, depois secundado por uma entrevista de Jean-Claude Bernardet, que é uma figura super respeitada no país como crítico e historiador do cinema, então tudo isso convergiu para dar esse perfil à Paraíba, e que é preciso ainda alguma luta e alguma perseverança nesse processo.

O Estado fomentando, a universidade já fez o Fest Aruanda e é continuar nessa luta, porque os frutos estão aí. A produção paraibana de cinema de longa-metragem, não mais o curta, não mais só o documentário, mas a Paraíba, através dos valores, inclusive valores locais, pessoas que estão fixadas à terra paraibana e que tiveram a capacidade de fazer.

Claro, se a gente contar do surgimento do documentário Aruanda junto com outros filmes que nós fizemos naquele período, já são somados 60 anos ou mais de 60 anos. Aruanda é de 1960 quando foi exibido. De lá para cá, foi uma luta. Está aí estabelecida uma existência exitosa, que deu um recado, e que seja multiplicado e seguido com maior intensidade.

Ascom – Para você, o cinema paraibano tem uma identidade? Se sim, qual? Existe uma temática comum, um jeito de fazer em comum?

Vladimir Carvalho – Uma consciência social e humana profunda, levando em conta que nós aqui temos, isso no perfil geral do país, o Nordeste de um modo geral tem um traço muito forte, a sua cultura é muito forte, está arraigada, não há uma volubilidade, as coisas estão assentadas desde os tempos de colônia.

Por um problema ou outro, até mesmo o subdesenvolvimento nordestino é muito presente nas preocupações do cinema realizado no Nordeste. O apuro técnico, a parte artística, sensível e podia até dizer talentosa de quem faz esse cinema, mas alguma coisa como um vínculo é quase que, vamos dizer assim, um cordão umbilical com a realidade social.

Isso já estava nos documentários, esse traço permanece. Essa remessa de filmes, se você analisar um por um dos seis que eu estou falando, a Paraíba deu uma de gata parideira, uma ninhada de seis filmes, todos excelentes, louvados na imprensa, por quem tem a competência para fazer. 

Ascom – A Agência Nacional do Cinema (Ancine) parece que vai pra Brasília...

Vladimir Carvalho – Eu penso que, tudo na história, eu não diria que seja passageira, mas é mutante. Nós estamos num processo político. Quem de bom senso diria que iríamos enfrentar um governo desse tipo, um governo fascista, autoritário, completamente alheio aos apelos da nação, no que pese ele falar que está falando de acordo com o que foi prometido em campanha. Pelo menos a gente vê claramente que não tem vínculos com a realidade brasileira. Se tiver, é da forma mais estropiada, completamente fora de propósito e que a gente tem que, pelo processo democrático, mudar, mudar outra vez.

A gente está sofrendo como que um choque que a gente tem que desmontar essa eletricidade aí e recuperar o tempo perdido. O que foi feito por ele já é um prejuízo notável. Cabe a nós demonstrarmos para esse governo, mesmo assim, pros meios que a gente tem de tornar essa coisa menos nociva, porque o prejuízo já foi, já teve um retardo, nós todos estamos esperamos que a Ancine recupere o fôlego e que não se faça da Ancine um valhacouto de ideias malucas, como era o caso do que ele está propondo, porque no fundo, é um censor furioso, porque ele atinge a toda uma cadeia.

O cinema brasileiro, ao contrário do que ele diz, estava aflorando, esse ano mesmo teve duas ou três contemplações no exterior, afirmação dos seus valores em festivais internacionais, ao mesmo tempo em que ele estava tomando posição contrária ao desenvolvimento - porque isso faz parte do desenvolvimento da sociedade brasileira.

O cinema brasileiro é uma expressão da nossa cultura e do nosso status de nação independente e democrática, principalmente. Então, é algo que a gente, mais cedo ou mais tarde, vai ter que consertar, e consertar talvez com a máquina em movimento.

Ascom – Então, para você, o Estado tem esse papel de fomentar o cinema porque o cinema faz parte da identidade do país. É possível fazer com financiamento privado? Há riscos?

Vladimir Carvalho – Na verdade, o investimento privado já estava normatizado no sistema das leis - a Lei Rouanet, isso o Estado estava administrando da forma mais correta possível. Agora, o que tem que se ver nesse presente momento, passada essa onda da aprovação da Reforma da Previdência, porque isso tomou o foco, as atenções se voltaram para esse momento, é possível que a gente modifique, até pela lei, porque a Ancine é uma lei.

Então, vamos botar a bola no gramado, no chão, e vamos trabalhar com os remédios democráticos. Porque os dele são de um fascismo, é de um autoritarismo atroz. Nós não vamos aceitar, não podemos aceitar, porque é a destruição do cinema brasileiro.

Quando você falou da contribuição da iniciativa privada, ela já está estruturada. É a renúncia fiscal. E muito bem, tanto que deram frutos, o cinema brasileiro nunca esteve tão bem há coisa de um ano atrás.

Ascom – Você está terminando um filme?

Vladimir Carvalho - Esse meu filme seria algo como um adeus às armas e um apelo ao bom senso, estou fazendo o perfil de uma pessoa que viveu dois terços da vida dele na clandestinidade: Giocondo Dias. Começou tomando um quartel em 1935, em Natal, entrou no quartel e disse para o comandante 'o senhor está preso em nome do general Luís Carlos Prestes'.

Luís Carlos Prestes nunca foi general, para você ter ideia do que era. Era a luta armada que o partido comunista tinha adotado nesse período, é a intentona de 1935. Essa lição, ele atravessou-se na frente de um soldado para defender o governador que estava sendo atacado, tomou três balaços e caiu pronto no chão. Sobreviveu. Foi escondido numa fazenda, fizeram uma cirurgia e ele se salvou.

A vida dele mudou paulatinamente a partir daí e ele termina como um grande articulador da luta democrática para a legalidade do Partido Comunista no Brasil. Isso, sendo ele como irmão de luta, baianos ambos, Carlos Marighella e Giocondo Dias eram unha e carne. Só que numa última tentativa, o Giocondo ficou com o Carlos Marighella, dez horas trancado, tentando convencê-lo a abandonar a luta armada, não houve como convencê-lo.

Um ano depois, o Carlos Marighella foi assassinado em São Paulo. O Giocondo optou pela democratização e pela legalidade do partido, foi ele que articulou, já no fim de tudo, depois que o Brasil voltou ao Estado de Direito, à legalidade do Partido Comunista. O filme está em fase de finalização.

Ascom/UFPB